O desenvolvimento social e econômico de qualquer país está intimamente ligado à sua capacidade de desenvolver soluções e tecnologias próprias, diminuindo a dependência de nações e empresas estrangeiras. Mas para que isso seja possível, é preciso investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e fomentar a transformação do conhecimento gerado nas universidades em produtos e serviços que possam beneficiar a sociedade. A transferência de tecnologia é uma importante ferramenta que liga pesquisa científica e empresas, proporcionando a oportunidade de levar inovação para o mercado.
A relação, porém, entre empresas e universidades, nem sempre é fácil. Com tradições e prazos bem diferentes, iniciativa privada e academia têm se esforçado para criar uma ambientação e uma linguagem em comum.
Criada em 1997, a Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica (CTIT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) atua em direção ao favorecimento e fortalecimento do Sistema Nacional de Inovação, estruturando os esforços para que as pesquisas desenvolvidas na UFMG cheguem à sociedade na forma de novos produtos, processos e serviços.
Os dados mais recentes disponibilizados pela universidade dão conta de: 1.900 pedidos de patentes no Brasil e Exterior; 140 licenciamentos de tecnologias ao mercado e 82 empresas graduadas na incubadora Inova.
De acordo com o diretor da CTIT/UFMG, Gilberto Medeiros, ajustar os “tempos” da pesquisa e da indústria é o primeiro grande desafio que, aos poucos, vem sendo vencido à medida que eles conhecem melhor as necessidades um do outro.
“São duas pontas de um processo. Em uma, está a demanda da sociedade e das empresas. E, na outra, a oferta. Não adianta ter uma oferta se não existe a demanda. O papel da universidade não é dar uma solução para o mês que vem. O caso da vacina contra Covid-19 é um exemplo. Era uma pesquisa de base pura e na pandemia pode ser aplicada. A mesma coisa foi quando inventaram o laser. Ninguém imaginava que ele seria necessário em cirurgias e na telefonia. É assim que o progresso é feito. Não existe tanta diferença entre pesquisa básica e aplicada. Existe pesquisa boa e ruim. E existe um tempo para a aplicação. É isso que as políticas públicas devem observar”, explica Medeiros.
Legislação promove inovação e transferência de tecnologia
A principal política pública brasileira é o próprio Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/2016), que dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação. No Marco está contida a política de “incentivo à constituição de ambientes favoráveis à inovação e às atividades de transferência de tecnologia”.
União, Estados, Distrito Federal, Municípios e as respectivas agências de fomento, diz a Lei, “poderão estimular e apoiar a constituição de alianças estratégicas e o desenvolvimento de projetos de cooperação envolvendo empresas, ICTs e entidades privadas sem fins lucrativos voltados para atividades de pesquisa e desenvolvimento, que objetivem a geração de produtos, processos e serviços inovadores e a transferência e a difusão de tecnologia”.
Advogada especialista no tema, a coordenadora executiva CTIT, Juliana Crepaldi, avalia que a legislação brasileira tem avançado nos últimos anos, mas o número de transferências ainda não é compatível com o que é desenvolvido nas universidades e nem com as necessidades da indústria nacional.
“O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação trouxe mais flexibilidade para arranjos de inovação de forma geral, sem abrir mão da segurança jurídica. Foram muitas mudanças e as universidades precisam criar dentro da sua política de inovação interna novas estruturas. Se a transferência for sem exclusividade, não é mais preciso um edital público. Se for com exclusividade, tem que ter uma oferta pública, mais suave que uma licitação. A negociação também pode ser direta, seguindo as regras de transparência e probidade, por exemplo”, pontua Juliana Crepaldi.
O sucesso conquistado pela UFMG coloca a instituição entre as mais inovadoras e que mais faz transferências tecnológicas. No ranking do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), está entre as cinco maiores depositantes de patentes no País. Em 2020, venceu a primeira edição do Prêmio Patente do Ano – Melhor Patente Aplicada à Covid-19. E, em 2022, a UFMG venceu o prêmio de Patente do Ano com tecido inteligente que controla a temperatura corporal, concedido pela Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI). Por ter sido a universidade brasileira que registrou o maior número de patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), no período de 2010 a 2019, a UFMG recebeu o Prêmio de Inovação Universidades, concedido pela Clarivate.
Transferência de tecnologia leva inovação mineira para Alemanha
O caminho entre uma ideia e um produto pode ser bastante longo. Uma das inovações mais festejadas nos últimos tempos pela UFMG demorou 17 anos entre os primeiros passos nas bancadas do Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (Icex) da UFMG, até se tornar um equipamento disputado por alguns dos mais renomados institutos de pesquisa e cientistas do mundo: o nanoscópio.
O equipamento óptico de altíssima precisão – capaz de obter imagens na escala do nanômetro (medida 1 bilhão de vezes menor que o metro) – ganhou, em fevereiro de 2021, a capa da prestigiada revista Nature. A publicação destacava que o nanoscópio ajudaria a extrair informações sobre as estruturas vibracional e eletrônica do grafeno. Isso é importante para entender as propriedades deste material, incluindo a supercondutividade. Naquela época estava sendo construído o protótipo pré-comercial do equipamento.
Passados dois anos e meio, no dia 8 de novembro de 2023, a FabNS (Fábrica de Nanossoluções), sediada no Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BHTec) e criada por egressos da UFMG, enviou para a Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha, a primeira unidade do nanoscópio.
Nenhum outro equipamento é capaz de elucidar, como o nanoscópio, uma estrutura cristalográfica com tal nível de detalhe. Microscópios eletrônicos e equipamentos de raios-x possibilitam enxergar a estrutura cristalográfica dos materiais, mas não extrair informações funcionais sobre essa estrutura. Concretizar a venda para uma instituição alemã é um duplo feito, já que o país europeu é centro de referência em instrumentação científica.
Segundo o cofundador da FabNS, Cassiano Rabelo, o desenvolvimento do equipamento teve como pilar a utilização dos nossos usuários.
“O nanoscópio surgiu para suprir uma necessidade dos usuários de ciência de base. Toda vez que chegava um visitante, ele elogiava e perguntava se não iríamos produzir, então fomos melhorando a usabilidade do produto. A UFMG tem uma preocupação com o registro intelectual, então resolvemos montar a empresa, procuramos a CTIT e fizemos um acordo para licenciar essas tecnologias. No nosso caso, os fundadores da FabNS são coinventores e a UFMG é a titular do invento. Foram licenciadas mais de 10 tecnologias. Temos um acordo de parceria com a Universidade, com os resultados conquistados pela empresa, melhoramos o laboratório que nos abrigou”, destaca Rabelo.
Para o diretor da CTIT/ UFMG, Gilberto Medeiros, as empresas devem buscar saber o que acontece dentro das universidades e se envolver em projetos. Isso pode tornar os processos mais rápidos e assertivos.
“Existem segmentos da pesquisa muito rápidos, como os softwares. Outros são mais lentos, como a nanotecnologia. Quem exportou o nanoscópio agora, começou o trabalho há 17 anos. O risco para o pesquisador é diferente do risco para a empresa, mas ele também pode não ter resultado. A solução é a busca da qualidade, o rigor científico tem que ser observado todo o tempo. As empresas têm que participar, contratar estudantes, participar de projetos. A trajetória para o futuro exige parcerias que possuam uma compreensão mútua das vicissitudes do outro lado. Todos aprendem e lucram ao longo do processo. Se essa trajetória seguir os parâmetros de qualidade, vai dar certo. O conhecimento é a única forma democrática de geração de riqueza”, analisa o diretor da CTIT/ UFMG.
Universidade de Viçosa é polo de inovação e transferência de tecnologia
Divulgado no fim de novembro pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores (Brasil Júnior), o Ranking de Universidades Empreendedoras (RUE) de 2023 apontou a Universidade Federal de Viçosa (UFV), na Zona da Mata, entre as 10 mais empreendedoras do Brasil, na terceira colocação. O empreendedorismo caminha a par e passo com a inovação e a capacidade de fazer a transferência de tecnologia dos laboratórios para as indústrias.
Lá, o trabalho de juntar empresa e academia é realizado pelo Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT). Entre os resultados obtidos pela universidade até aqui estão: 291 depósitos de pedido de patente; 95 patentes concedidas no Brasil; 17 patentes concedidas no exterior; 188 registros de software; 55 cultivares; 69 marcas; 41 contratos de transferência de tecnologia; além de R$ 131 milhões em acordos de parceria entre 2017 e 2022 e R$ 1,35 milhão em royalties, no mesmo período.
Para a presidente e coordenadora-geral do NIT/ UFV, Andrea Ribon, a tradição de pesquisas no setor agropecuário atrai a atenção das empresas para a instituição, mas o potencial da UFV vai muito além. Destacam-se pesquisas em tecnologia de alimentos, química, hidrogênio verde, créditos de carbono, biotecnologia aplicada à saúde animal, entre outros temas. A universidade é, também, um polo Embrappi (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) em fibras florestais.
“As empresas nos procuram para fazer parcerias, desenvolver projetos e procuram os professores que sabem que são referência. Elas chegam ao NIT que tem os instrumentos jurídicos para fazer essa relação. Às vezes elas reclamam da burocracia da universidade, mas é preciso seguir um processo para não lesar o interesse da universidade e da comunidade. Uma parceria para funcionar, tem que ser boa para as duas partes principalmente porque lidamos com o conhecimento gerado em uma instituição financiada por dinheiro público”, explica Andrea Ribon.
Além da universidade e da empresa, também ganham os alunos que adquirem experiência, entram em contato com empresas e usufruem de novas bolsas para trabalhar em projetos de pesquisa. Esse estreitamento de relação também incentiva uma nova cultura de empreendedorismo dentro da academia.
“Está ficando mais fácil. O Marco Legal de 2016 aumentou o nível de transparência e de segurança jurídica, melhorando a cultura da transferência de tecnologia entre os professores. Vários têm parcerias e equipes de alunos que são absorvidos pelas empresas. Até a mentalidade dos alunos está mudando, eles querem ir para as indústrias e até se motivam a criarem as suas próprias empresas”, avalia a presidente e coordenadora-geral do NIT/UFV.
Calixcoca busca parceiro para transferência de tecnologia
O sucesso do nanoscópio reverbera entre a comunidade científica e anima outros pesquisadores e empresas a seguir o difícil, porém fascinante e necessário caminho da pesquisa e desenvolvimento. Também bastante comentada na mídia, a Calixcoca – que ficou conhecida como a inovadora “vacina contra a cocaína e o crack”, já segue os passos do equipamento óptico para a transferência.
A Calixcoca foi a iniciativa destaque da segunda edição do Prêmio Euro Inovação na Saúde, que aconteceu em outubro, em São Paulo. A equipe da UFMG conquistou a premiação de 500 mil euros (cerca de R$ 2,6 milhões). O prêmio é organizado pela multinacional farmacêutica Eurofarma, que atua em mais de 20 países.
O estudo desenvolvido no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina gerou um medicamento que induz o sistema imune a produzir anticorpos que se ligam à cocaína na corrente sanguínea. Essa ligação transforma a droga em uma molécula grande, que não passa pela barreira hematoencefálica.
Segundo o pesquisador do Icex/UFMG – responsável pela síntese da molécula -, Ângelo de Fátima, o projeto já passou por etapas pré-clínicas, em que foram constatadas segurança e eficácia para tratamento da dependência de crack e cocaína e prevenção de consequências obstétricas e fetais da exposição às drogas durante a gravidez em animais.
“O que me move são as dores das pessoas. Sou um cientista, apesar disso não ser definido como profissão. Eu uso o conhecimento numa área específica – a química orgânica – para trazer alívio às dores. Em 2018, a polícia achou uma substância que não sabia qual era. A partir disso criamos métodos colorimétricos para identificar drogas, com uma das patentes já depositada. O estudo que desembocou na Calixcoca começou em 2012, quando resolvemos produzir uma versão brasileira, diferente de tudo que existia, de uma ‘vacina’ desenvolvida nos EUA”, relembra Ângelo de Fátima.
O objetivo agora é conquistar um parceiro capaz de transformar a substância através do trabalho do CTIT para realizar a transferência de tecnologia. Existe também o caminho do empreendedorismo.
“O papel do cientista é claro, mas a instituição precisa criar um ambiente para transformar o conhecimento em solução. Existe também o caminho da inovação e do empreendedorismo com políticas e conexões. Temos um curso de formação transversal em inovação e empreendedorismo. Precisamos oferecer aos cientistas e alunos uma formação empreendedora. Tem que ter equipes que ajudem os cientistas nesse processo, capazes de fazer uma gestão qualificada da propriedade intelectual”, destaca a coordenadora-executiva do CTIT.
“Esse processo é longo e são necessários diferentes players em diferentes momentos. O ambiente também nos forma. Eu me sinto, na UFMG, extremamente amparado e motivado porque eu não tenho que entender de legislação, por exemplo. Existe a equipe do CTIT para nos ajudar e permitir que os pesquisadores se dediquem aos seus estudos. Há 16 anos na universidade, meu papel é motivar a nova geração a acreditar nos seus sonhos”, completa o pesquisador do Icex/UFMG. (DM)
Pequenos negócios terão R$ 400 milhões em programa de inovação do Sebrae
O Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) deve investir cerca de R$ 400 milhões nas micro e pequenas empresas (MPEs) brasileiras no próximo ano. O montante visa possibilitar a elas o acesso a soluções tecnológicas e de inovação, permitindo aumento de até 60% no faturamento. Somente nos últimos quatro anos do projeto Sebraetec, que entra na sua vigésima edição, foram destinados cerca de R$ 1 bilhão, com impacto em aproximadamente 190 mil MPEs.
Os recursos do próximo ano pretendem contemplar cerca de 70 mil negócios com foco em novas demandas de mercado. Os subsídios do programa poderão chegar a até 90% do valor das consultorias, conforme a necessidade do empreendedor. Para ter acesso aos serviços tecnológicos, os micros e pequenos empresários terão uma rede de prestadores de serviços.
A nova edição do programa Sebraetec conta com novidades que acompanham o cenário da neoindustrialização. Na programação, temas como a aplicação de Inteligência Artificial (IA), a implementação de boas práticas ESG, de acessibilidade no atendimento, entre outras.
Em uma pesquisa de avaliação realizada nos negócios atendidos no ano passado pelo Sebraetec, 81% das empresas avaliadas afirmam que melhoraram o atendimento e 85% alegaram que apresentaram melhorias na qualidade de produtos e serviços prestados.
O setor que mais demandou o programa foi o de agronegócio. Nessa área, os empreendedores buscaram, principalmente, soluções para melhorar a produtividade no campo, tanto na agricultura quanto na pecuária, como também para realizar o melhoramento genético do rebanho, com uso de recursos de inseminação artificial (IATV) e fertilização in vitro (FIV).
Para o presidente do Sebrae Nacional, Décio Lima, os agentes locais de inovação que trabalham diretamente com os micro e pequenos empresários são imprescindíveis para a transformação que precisa acontecer no Brasil. “Vocês conseguem transformar a vida das pessoas, trazendo renda e esperança para que elas não desistam de construir um caminho de felicidade e dignidade”, ressaltou.
Lima também projetou um alcance ainda maior das iniciativas nos próximos anos. Em 2023, o Sebraetec alcançou 80% dos municípios brasileiros, com destaque para pequenas cidades do Norte e Nordeste. “Seremos o país mais criativo no campo das startups, da inteligência artificial e vamos ajudar a revolucionar a economia global. Precisamos lembrar que os agentes locais de inovação e o Sebraetec são ferramentas para que nesse mundo sustentável e inovador haja inclusão social. Não podemos mais conviver com um mundo em que milhões de pessoas passam fome”, disse.
Além das iniciativas mais modernas, como o uso de ferramentas tecnológicas que contam com IA, outras novidades serão agregadas. Na área da sustentabilidade, haverá serviços para a elaboração de inventário de ativos que podem ser recompensados pelas empresas e no caso da acessibilidade, serão disponibilizadas consultorias para que as empresas adaptem seus ambientes para atender clientes com qualquer tipo de necessidade especial. (Juliana Sodré)